Por Márcio Jones
Marco Feliciano, direitos humanos, homossexualidade, homofobia, programas televisivos, entre outros tópicos afins. Os dias passados foram agitados. E com todos esses assuntos, também voltou à pauta, no meio eclesiástico, a célebre frase: “não toque no ungido do Senhor”. Então, pensam muitos, visto que Marco Feliciano ou quem quer que seja é pastor, é ministro da palavra, ser vedada qualquer sentença contrária que lhe diga respeito.
Confesso que este tema me irrita um
pouco. Porém, creio ter razões para isso. Não poucas foram as arbitrariedades
de que tomei conhecimento, sob tal pretexto. Conheço bem o contexto
neopentecostal. Foram sete anos respirando essa visão. E, nota-se, lá está não
o berço da expressão — ungido do Senhor, mas de seu emprego arrogante,
autoritário e amordaçador. Eis que de uma falácia de autoridade tal uso fez
montaria e assim se põe a cavalgar nos arraiais evangélicos que cultivam a
ignorância e o analfabetismo bíblico e teológico. Com efeito, isso se insere
num processo.
Quão logo o neófito, o novo convertido, torna-se um membro, não se
considera primordial o ensino quanto ao uso dos meios de graça ou relativo às
principais doutrinas cristãs, por exemplo. Em seco lhe fazem engolir o que
chamam de “princípio de autoridade”, uma gama de conceitos distorcidos sobre
autoridade espiritual, que serve de alicerce para o que virá em seguida. É
dizer, tudo o que esse neófito vier a aprender posteriormente será filtrado
segundo esse conjunto de preceitos aprendidos a título de autoridade, no âmbito
eclesiástico. O dito método ardiloso é eficaz, confesso, uma vez que, no
futuro, passa a consistir em uma garantia que tem o líder de que não será
contrastado, ou, caso o seja, em casos excepcionais, terá ao seu lado a maioria
dos membros da igreja, também infectados por essa linha de pensamento, e pode,
facilmente, taxar o dissidente de rebelde, alguém que "tocou no ungido do
Senhor".
É esse o uso que se tem feito da referida expressão: uma carta branca
conferida a um líder para expor o que pensa e fazer o que lhe convém, sendo
vedado aos demais crentes contrapô-lo, censurá-lo, e até mesmo mencioná-lo
pejorativamente, ainda que ele esteja frontal e notoriamente contra a
Escritura. Ai de quem falar algo sobre o ungido!!
Pois bem, outros já examinaram a origem da expressão e alguns de seus
desdobramentos (Como assim, "não toqueis no ungido do Senhor..."?! ; O USO CORRETO DA EXPRESSÃO "UNGIDO DO SENHOR"). Penso ser interessante analisar o porquê não devo conferir
plena credibilidade a qualquer um que arrogue para si o título de ministro do
Evangelho, porque “ungido”, e quais os mecanismo bíblicos para se frear tais
manifestações.
Em primeiro lugar, o alcance e
significado bíblicos da expressão 'ungido do Senhor' é bastante restrito e no
Antigo Testamento quer-se referir ao ato em que um profeta ou juiz, a mando de
Deus, investia oficialmente um indivíduo, escolhido e designado por Javé, no
cargo de rei de Israel. Na oportunidade, era derramado óleo sobre sua cabeça a
fim de consumar o ato. Dessa maneira, por exemplo, procedeu Samuel para com
Saul (1 Sm 10.1) e Davi (1 Sm 16.13).
Nesse diapasão, é um tanto
quanto equivocado referir-se a um ministro como ungido do Senhor. A unção como
realizada no período monárquico de Israel tinha feições nitidamente de comando,
de condução da vida política, militar e social, uma vez que, naquele momento, o
povo requeria ser governado por um rei, como as nações em redor (1 Sm 8.4-9,
19-20). Isto é, contextos distintos e conceitos distintos. É um tentativa de
repercussão de um termo em franco desrespeito à sua originalidade.
Em segundo lugar, muitos entendem como uma carta de recomendação o tão
só fato de um indivíduo ser conhecido publicamente como ministro da Palavra.
Isso basta! Não importa o que vive, prega ou ensina. Perceba que não é este o
doutrinamento do Novo Testamento. Antes, somos instados a confrontar o ensino
desses homens com o que está escrito, uma vez que, desde os primórdios da
igreja, os falsos mestres se mantêm em ativa atuação, e que aquilo que por eles
é propagado, na maioria dos casos, é sutil e sorrateiro, contudo letal.
Jesus fez minuciosas advertências quanto à perniciosidade do falso
ensino (Mt 13.5-12; 23.1-12; 24.3-14), Paulo igualmente o fez (At 20.29-31; 2
Co 11.4-15; Gl 1.6-12; Cl 2.8; 1 Tm 4.1-5; 2 Tm 4.1-4), bem assim o apóstolo
Pedro (2 Pe 2.1-3), João (1 Jo 2.18-19; 4.1-6) e Judas (3-4). Seguramente se
conclui que as doutrinas do erro permeavam e continuam a permear a igreja de
Cristo, cabendo aos crentes repeli-las, algo que só é possível quando existem
profundas raízes doutrinárias, solidez teológica e cristocêntrica.
Posto isso, se faz assaz ingênuo crer que falsos mestres tenham
dependurado em suas testas um fosforescente letreiro em luz néon que assim o
indique. O critério para legitimação de alguém que se propõe ao ensino, à
instrução é moral (Mt 7.15-20) e
doutrinal (At 17.10-11; 1 Tm 6.3-4; Tt 2.1).
Em terceiro lugar, ainda que, em contrariedade com o supramencionado,
admitíssemos a figura do ungido do Senhor tal como seu errôneo uso corrente,
inexiste poder deferido de maneira irrestrita a um líder cristão de molde a
impedir lhe sejam feitas advertências (1 Sm 24.12,15; 26.9-10) ou até mesmo
denúncias (1 Tm 5.19) quando este estiver em desacordo com os parâmetros
estabelecidos por Deus em sua palavra.
Por último, uma compreensão mais ampla e neotestamentária da expressão
em comento é a empregada por João, na primeira epístola que leva seu nome,
pouco após alertar sobre o perigo da apostasia, nos seguintes termos: "E
vós possuis a unção que vem do Santo e todos tendes conhecimento" (1 Jo
2.20), e outra vez, logo em seguida: "Quanto a vós outros, a unção que
dele recebestes permanece em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos
ensine; mas, como a sua unção ensina a respeito de todas as coisas, e é
verdadeira, e não é falsa, permanecei nele, como também ela vos ensinou"
(1 Jo 2.27). Crentes verdadeiros são detentores da aludida unção, que concede
compreensão espiritual das Escrituras, da doutrina, bem como entendimento para
distinguir entre a verdade e o erro. Trata-se de uma capacidade para discernir
entre o que é consentâneo ou não às balizas estabelecidas pelo Senhor. Nessa
linha — diferentemente dos pastores autoritários, todos quantos estamos inabaláveis,
firmes nessa graça e nos gloriamos na esperança da glória de Deus somos ungidos
do Senhor (Rm 5.2).
"Eis que de uma falácia de autoridade tal uso fez montaria e assim se põe a cavalgar nos arraiais evangélicos que cultivam a ignorância e o analfabetismo bíblico e teológico"
ResponderExcluirO triste mesmo, Márcio, é ver até as igrejas ditas Reformadas com quase 80% de seus membros acreditando na frase "Ungido do Senhor".
Basta orar pelo verdadeiro Avivamento.
Belíssimo texto.
O cristianismo é uma religião essencialmente constituída de doutrina, como diria John Stott. Pena hoje negligenciarmos o estudo sério da Escritura. Por isso sobrevivem os clichês e os postulados nada bíblicos, que têm aparência de piedade, mas completo desvalor.
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