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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Um sonho inquietante


Por Ricardo Gondin

Exausto, deitei-me já tarde. O silêncio da madrugada fria convidava-me para uma noite de sono profundo. Aquela seria uma noite curta pois antes do sol nascer já teria que estar em pé novamente. Noites curtas são geralmente sem sonhos. Deito-me e antes que perceba, as horas se passaram céleres. Ontem, entretanto, não foi assim. Sonhei a noite inteira.

Sonhei que estava em um culto com o auditório lotado. A reunião iniciou-se com uma oração muito mecânica. Apresentou-se logo um grupo musical gospel. Nos primeiros acordes, notei que faltava talento e sobravam decibéis. A letra era paupérrima, toda a música concentrava-se em repetir um refrão: “O leão de Judá derrotou o outro leão perigoso.” A multidão foi ao delírio com o término da apresentação que todos chamaram de “louvorzão.” Gritava e movia-se em um frenesi alucinante. O líder do culto, levantou-se e ensinou as pessoas uma coreografia que, segundo ele, derrotaria o diabo. Todos, como se estivessem com espadas na mão, passaram a encenar uma batalha de esgrima. Terminada a “batalha” foram gastos mais de quarenta minutos no levantamento das ofertas. O ambiente tornou-se constrangedor. Tudo foi feito para aumentar a contribuição. Desde ameaças a promessas de que receberiam cem vezes mais. As ofertas resolveriam todos os problemas das pessoas. De acordo com o valor dado, o câncer desapareceria, os problemas conjugais se resolveriam. A oferta seria a chave para uma vida plena e feliz.

O preletor daquela noite, levantou-se para pregar e, por cerca de cinqüenta minutos, falou sobre assuntos diversos sem, contudo conduzir uma linha de raciocínio, sem qualquer compromisso de expor a Bíblia. Parecia não haver se preparado. Falava, falava, deixando que suas divagações o conduzissem a um próximo pensamento, que nem ele próprio sabia qual era. Meu sonho me perturbava. Transformava-se em um pesadelo.

De repente, vi ao meu lado, participando daquele culto, para minha absoluta surpresa, quatro personagens históricos: Martinho Lutero, João Calvino, João Wesley e Charles Finney. Mal podia acreditar que um dia estaria cultuando a Deus ao lado de tão ilustres personalidades do mundo protestante. Em meu sonho, eu fui apresentado a eles pelo sueco Gunar Vingren, fundador do pentecostalismo no Brasil. Todos pareciam se conhecer há muito, havia uma familiaridade entre eles. Contudo, embora estivéssemos participando de um mesmo culto, todos mostravam-se igualmente inquietos. O clima era desconfortável. Mesmo sonhando, lembro-me de como o músculo de minha face tremia diante da honra de apertar a mão de cada um deles. Muitas perguntas vieram à minha mente. Curiosidades, esclarecimentos, dúvidas que precisavam ser sanadas. Mas, ao contrário, eles é que começaram a me questionar.

Lutero estava indignado pelo que parecia uma volta da igreja à Época Medieval das relíquias, dos amuletos e das indulgências. Queria saber o que aconteceu aos protestantes para estarem novamente acreditando que sal grosso “afasta mal olhado”, que copo d’água traz bênçãos. Perguntou-me como a igreja passou a acreditar em maldição familiar.

Expliquei-lhe que a igreja brasileira convive com uma cultura muito mística. Falei da herança católica medieval, depois disse que os índios brasileiros eram animistas e ainda tracei um cuidadoso curso da religiosidade africana e como ela se contextualizou. Lutero, porém, veemente, mostrou-me os efeitos devastadores que as relíquias tiveram em seus dias e que somos justificados pela fé. Para ele, a Palavra deveria ser suficiente para produzir fé e que não precisamos de “pontos de contato” para que o poder de Deus flua em nós.

Calvino, interveio em minha conversa com Lutero. Ele também estava revoltado. Sua maior preocupação era entender o porquê de tanto descaso com a Bíblia. Ele não entendia como nos separamos tanto da Reforma que transformou o conceito de culto. Calvino me falava que até o avanço dos protestantes na Europa, cultuar a Deus, resumia-se em se assistir a um ritual. A liturgia era mais importante que a exposição do texto sagrado. Mas os reformadores, segundo ele me dizia, lutaram muito para que as pessoas apreendessem que a melhor maneira de cultuar a Deus é conhecendo e vivendo os princípios eternos de Deus. Concluiu me mostrando que o púlpito antigamente ficava deslocado em um lugar de menor importância e que o altar é que era central. Só no protestantismo, o púlpito passou a ocupar o lugar mais central do templo. Tentei mostrar-lhe que estamos em uma sociedade viciada em imagens. Que o nosso nível de atenção hoje é mínimo. Falei-lhe dos vídeo clips, da superficialidade cultural que a televisão produz. Ouviu-me com atenção, mas parece não ter aceitado minha explicação.

Wesley estava aturdido. Em meu sonho, ele me dizia que percebia por aquele culto que havia muitos chavões mas pouco compromisso ético na igreja. Por duas vezes, me perguntou: “Será possível conduzir a obra de Deus apenas prometendo triunfo, sem jamais questionar a vocação profética da igreja? Wesley não entendeu a interpretação de textos do Antigo Testamento, prometendo que os crentes foram postos por cabeça e não por cauda. Será que a igreja evangélica não sabe que o “grão de trigo precisa morrer para produzir muitos frutos?” Insistia me indagando: Não somos chamados para sermos sal da terra e luz do mundo antes que nos preocuparmos com riqueza e poder? Novamente tentei explicar. Mas, eu próprio estava envergonhado e minha explicação foi vã.

No sonho, Charles Finney, também se aproximava de mim querendo entender o que se passava. Falou-me de como eram os cultos evangelísticos de seus dias e de como as pessoas encaravam o novo nascimento. Mostrou-me que o apelo para as pessoas se converterem foi uma quebra de paradigmas. Ele fazia o apelo para que as pessoas que estavam “ansiosas” por salvação tivessem um tempo para refletir e saber se realmente desejavam um compromisso real com Cristo. Que o novo nascimento era uma decisão importantíssima que as pessoas faziam em resposta à graça. Sua inquietação com o culto de meus sonhos vinha da maneira tão trivial que as pessoas encaravam a conversão e o discipulado. Finney dizia-me que o cristianismo moderno está se esvaziando de seus conteúdos e que em breve muitos não saberão sequer explicar o que lhes aconteceu na conversão.

Gunnar Vingren, que me apresentou aos outros ilustres personagens, não aceitava que todo o sacrifício dos pioneiros do movimento pentecostal desmoronasse em uma teologia tão imediatista. Ele dizia que não há pentecostes sem a cruz. Com um sotaque sueco, disse-me: – Meu filho, não há experiências com o Espírito Santo sem zelo missionário, sem paixão evangelística.

Comecei a suar e meu sono tornou-se atribulado. Estava rodeado com uma grande nuvem de testemunhas, e todos tinham o semblante preocupado. Acordei.
Sem conseguir voltar para a cama, orei. Em minha prece, pedi que Deus levante uma igreja evangélica no Brasil comprometida em ter apenas a Bíblia como regra de fé e de prática. Pedi que Deus levante pastores que cuidem do povo como rebanho de Deus e não como um investimento que pode ser capitalizado no futuro. Orei para que os seminaristas não confundam sucesso com um ministério aprovado por Deus. Supliquei a Deus que nos faça uma igreja solidária com os miseráveis, profética na defesa dos indignos e misericordiosa com os pecadores.

Os sonhos são interessantes. Muitas vezes mostram o que não queremos ver. Talvez, a maior necessidade da igreja seja olhar-se criticamente. Se fecharmos os olhos para a trivialização do sagrado, para a falta de compromissos éticos e proféticos, para a transformação do culto em espetáculo, não só nos condenamos a sermos irrelevantes para a nossa geração como envergonharemos muita gente que já deu a sua vida pela causa de Cristo.

Que Deus nos ajude.

Soli Deo Gloria




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